Marcos Cesar Danhoni Neves* Josie Agatha Parrilha da Silva**
A influência fundamentalista cristão sobre a
educação pública no Brasil,
na ciência e no tecido social:
democracia em risco
A imparcialidade diante dos conflitos do campo religioso é o princípio da laicidade do Estado, que corresponde à soberania popular em matéria de política e de cultura. Corretamente entendido, o Estado laico não apóia correntes religiosas direta nem indiretamente, explícita nem implicitamente. Tampouco professa uma ideologia irreligiosa ou anti-religiosa. A laicidade do Estado é pré-condição para a liberdade de crença garantida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e pela Constituição brasileira de 1988. (In: OLE, Observatório da Laicidade do Estado).
INTRODUÇÃO
O presente trabalho é dividido em duas partes. A primeira explora um livro didático popular da 5ª. Série do Ensino Fundamental, que resume o grau de ingerência da religião no aparato da educação brasileira e que pode ser a chave de interpretação para compreender o totalitarismo religioso (imposto por Igrejas de toda ordem – católica, pentecostais, neo-pentecostais, etc. - , pelo Vaticano, pela política e pela mídia brasileira) que tomou conta do Brasil, especialmente nas últimas eleições presidenciais. A segunda parte, mergulha então num contexto macro, envolvendo o acordo Vaticano-Brasil, com o reconhecimento do Estado Brasileiro de que o Brasil é uma “nação católica”, na questão da ingerência do Vaticano sobre a discussão das pesquisas brasileiras com células-tronco, na ingerência de diversas correntes religiosas contra o PNDH (Plano Nacional de Direitos Humanos), especialmente na questão envolvendo uma agenda importante da saúde pública: o aborto. Brevemente será discutida a ação ardilosa da mídia brasileira que, explorando o grotesco durante a campanha presidencial passada (2010), manipulou a população para esconder o real motivo de seu descontentamento: uma luta contra poderes hegemônicos de grupos midiáticos e de observação pública da concessão de rádios e TVs.
O CASO DE UM LIVRO DIDÁTICO EIVADO DE TOTALITARISMO RELIGIOSO – O CRIACIONISMO EM DETRIMENTO DO EVOLUCIONISMO DARWINIANO
O livro sob análise não se trata de um livro de Biologia, como poderíamos esperar quando se envolve a temática do darwinismo, mas de História, intitulado “História, Sociedade e Cidadania” (5ª. série), de Alfredo Boulos Jr. (Editora FTD: São Paulo). O livro apresentava uma tendência muito forte em impregnar nas cabeças de crianças de 10 a 11 anos o mito criacionista cristão, quando, especialmente, tenta confrontar duas “teorias”: a dos evolucionistas e a dos (pasmem!) “criacionistas bíblicos modernos” (o adjetivo “moderno” empregado aqui já denota uma tentativa de dar lustro a uma velha e obscura história mítica ligada a uma das tantas religiões monoteístas atualmente existentes, especialmente a cristã).
As objeções em relação à este livro, são:
- apresentação de propaladores de idéias religiosamente canhestras (ligadas a diversos credos cristãos fundamentalistas) como “estudiosos”. O autor afirma que sua “obra” apresentará “versões divergentes” da História;
- à página 39 existe um absurdo que precede o outro absurdo do suposto “confronto” evolucionismo X criacionismo: uma ilustração que coloca grandes répteis do Jurássico junto com pequenos e grandes símios modernos;
- às pgs. 42 a 43 é feita a exposição da teoria evolucionista e a apresentação da discutível “tese” (que, afinal, é questão de fé...cristã!) dos “criacionistas bíblicos modernos”, como se isso fosse matéria de ciência. Depois, para mostrar um suposto equilíbrio entre “versões divergentes”, aparecem dois textos: um em defesa do evolucionismo e outro em defesa do criacionismo.
- à pg. 48, um estranho exercício de redação convida o aluno a escrever sobre uma “réplica” de um grande dinossauro (estranho o uso da palavra “réplica” e não de uma expressão como “réplica fiel de um fóssil de ...”);
- o texto apresenta também à pg. 101 um estranho texto que quer fazer passar uma tese absurda de que o mundo egípcio foi essencialmente monoteísta. Como professor de História e Epistemologia da Ciência num curso de graduação em Física e no curso de Mestrado em Educação para a Ciência, sei que o único período monoteísta da longa história (~ três mil anos) do Egito Antigo foi o do faraó Akhenaton.
Diz Cardoso:
“nos ambientes culturais marcados pelas grandes religiões monoteístas da atualidade, como o cristianismo e o islamismo, “politeísmo” é muitas vezes termo pejorativo, carregado de preconceitos derivados de acreditar-se numa superioridade inerente, intrínseca, do monoteísmo. Preconceitos a que muitos egiptólogos não eram imunes. Alguns chegam a explicitar abertamente sua convicção de haver grandes semelhanças da religião egípcia - por trás de uma fachada politeísta enganosa - com o cristianismo. É o caso de Christiane Desroches-Noblecourt e de François Daumas (Amour de la vie et sens du divin dans l’Égypte ancienne. Cognac: Fata Morgana, 1998. Col. “Hermès”): este último faz, por exemplo, um paralelo absolutamente anacrônico entre o texto egípcio Reflexões de um desesperado com a segunda epístola aos coríntios do apóstolo cristão Paulo.” (In: CARDOSO, C.F. “O faraó Akhenaton e nossos contemporâneos” http://www.pucrs.br/ffch/historia/egiptomania/farao.pdf)
- além da vontade inequívoca do autor da “obra” em tela de passar uma visão cristã da História, distorcendo fatos históricos, encontramos também, à pg. 155, um erro imperdoável para um livro de História: uma fotografia do templo de Hatschepsut (construído pela única mulher faraó do Egito Antigo). Erroneamente, a legenda do livro apresenta o templo como pertencente a uma cidade-estado grega [sic]!
- em todo o livro há longos trechos destinados à Moisés, à diáspora judaica, ao “Cântico dos Cânticos” (sem os trechos mais picantes desse poema de amor...), à fundação do Estado de Israel (sem falar na fragmentação do território palestino), etc. Procurei pelos grandes filósofos gregos, Sócrates, Platão e Aristóteles: encontrei-os, pobres, em duas únicas páginas quase ao final da “obra”.
O que é muito estranho (e compreensível!) numa “obra” desse naipe é a total ausência da propalada “divergência de versões”, pois, em relação ao criacionismo, não se menciona em nenhum momento o movimento de fundamentalistas cristãos nos EUA que foi responsável direto pela proibição do ensino do darwinismo em diversos Estados daquele país ou da inacreditável política “educaticida” (termo que acabei de inventar para “homicídio da educação) do casal Rosinha-Garotinho em ensinar nas escolas cariocas o criacionismo como verdade científica. Não há versões divergentes!
O livro parece que foi escrito para sobreviver de alguma forma à avaliação do PNLD (Plano Nacional do Livro Didático), tentando se adaptar aos critérios avaliativos, mas mantendo sua linha doutrinária cristã.
Em relação ao PNLD de História, que pode ser consultado diretamente no site ftp://ftp.fnde.gov.br/web/livro_didatico/guias_pnld_2008_historia.pdf, é decepcionante saber como a resenha e a escolha do livro foi feita de forma apressada e superficial. Afirmo isso até como participante de processos de avaliação educacional em diferentes níveis de ensino (incluindo o Ensino Fundamental).
Para as coleções de livro de História, podemos encontrar no PNLD, o seguinte texto:
“Concepção de História: A concepção de História adotada na Coleção deve viabilizar que o ALUNO APRENDA A PENSAR HISTORICAMENTE, compreendendo os diferentes processos e sujeitos históricos, as relações que se estabelecem entre os grupos humanos nos diferentes tempos e espaços. Deve possibilitar a incorporação da renovação historiográfica, partir de um problema ou conjunto de problemas, ou de diferentes versões, proporcionando a formação para a autonomia, a crítica e a participação na sociedade.
“Construção da cidadania: Este item considera se a coleção aborda a diversidade das experiências humanas com respeito e interesse, ESTIMULANDO O CONVÍVIO SOCIAL, o respeito, a tolerância e a liberdade, se abrange a formação da cidadania no conjunto do texto didático, e não apenas nas atividades ou em um capítulo, relacionando-a ao conteúdo histórico. Se aborda as temáticas das relações étnico-sociais e gênero, considerando o COMBATE AO PRECONCEITO, à discriminação racial e sexual e à violência contra a mulher, visando à construção de uma sociedade anti-racista, justa e igualitária e, enfim, se discute a historicidade das experiências sociais, trabalhando conceitos, habilidades e atitudes na CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA e contribuindo para o desenvolvimento da ética necessária ao convívio social.” [grifos nossos]
Se pensássemos como as diretrizes de concepção e avaliação do PNLD o livro “História, Sociedade e Cidadania” deveria ter recebido os piores scores dos itens avaliativos, pois deturpa a história (veja, p.ex., o caso de misturar, numa ilustração, grandes répteis com mamíferos e primatas modernos), compara o que não deve ser comparado (misturando, propositalmente, ciência e religião, confundindo alunos e pais, e repercutindo preconceitos religiosos, mesmo que de forma dissimulada), e não constrói uma sociedade igualitária pois, desde o princípio, a “obra” atenta contra a laicidade.
Mas como o PNLD avaliou a “obra”?!? É aí que reside talvez o maior perigo: o MEC dar aval a um material “didático” que compromete as bases da própria educação básica. A obra foi avaliada da forma que segue:
1.Concepção de História = bom
2.Conhecimentos históricos = bom
3. Fontes históricas / documentos = bom
4. Imagens = bom
5. Metodologia de ensino-aprendizagem = suficiente
6. Capacidades e habilidades =ótimo
7. Atividades e exercícios = bom
8. Construção da cidadania = bom
9. Manual do Professor = bom
10. Editoração e aspectos visuais = não [contemplado]
Em síntese, o livro em discussão está dentro de parâmetros de “qualidade” adotado pelo MEC e valida seu pressuposto fundamental: “(a obra) deve possibilitar a incorporação da renovação historiográfica, partir de um problema ou conjunto de problemas, ou de diferentes versões, proporcionando a formação para a autonomia, a crítica e a participação na sociedade.
Pergunta-mo-nos:
será que com todos os problemas aqui apresentados, a escola
que adotou o livro estará proporcionando “autonomia,
crítica e participação na sociedade”?
Os únicos dois “poréns” listados sobre a “obra” em tela pelo PNLD foram:
- “não se verifica eficaz preocupação quanto aos graus de complexidade e especificidade na abordagem dos conteúdos”. (PNLD, 2008, p. 97);
- “Permanecem, no entanto, algumas lacunas, podendo-se apontar muitas expressões incomuns, de difícil compreensão para os alunos e não contemplados no glossário. Em relação ao conjunto dos aspectos gráficos, verifica-se um certo descuido quanto à harmonia da página, contendo excesso de recuos, algumas ilustrações pouco integradas, em muitos casos, uma impressão visual que desfavorece a atenção do leitor”. (PNLD, 2008, p. 98)
Vê-se pois que a avaliação da “obra” tocou apenas aspectos superficiais, irrelevantes para um processo que deveria avaliar a correção histórica e a construção da autonomia, da crítica, e da formação integral do sujeito na sociedade plural que vivemos.
No entanto, analisando esse caso podemos colocá-lo dentro de um contexto mais amplo como foi, p.ex., a participação da ministra Marina Silva na reunião de um grêmio religioso evangélico sobre a “discussão” do criacionismo.
“Ao participar do 3o Simpósio sobre Criacionismo e Mídia, em São Paulo, ela equiparou o evolucionismo, a teoria mais aceita entre os cientistas para explicar a evolução da vida na Terra, ao criacionismo, a crença religiosa em que a vida foi criada por Deus exatamente como descreve a Bíblia. Depois, em entrevista a um blog de jovens adventistas, Marina – uma ex-candidata a freira que se tornou evangélica e é missionária da igreja Assembléia de Deus desde 2004 – defendeu o ensino nas escolas do criacionismo ao lado do evolucionismo.” (In:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81345-6010-506,00.html)
Francis Collins, famosos geneticista do Projeto Genoma, e devoto do cristianismo, afirma que se faz uma perigosa confusão semântica quando se afirma que a o evolucionismo é mais uma “teoria” entre tantas outras.
“Em ciência, uma teoria é uma coleção de observações reunidas numa visão consistente”, diz Collins. “A teoria eletromagnética é um exemplo. O termo ‘teoria’ não significa que ela ainda seja hipotética ou que não esteja correta. A biologia não faz quase sentido algum sem o evolucionismo para sustentá-la.” (In:
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81345-6010-506,00.html)
A despeito de toda a admiração que poderíamos ter pela Ministra Marina Silva perguntamo-nos se uma ministra de Estado, em claro conflito de interesses (aceitar pagamento de um grêmio religioso para participar de um evento privado durante o exercício de um cargo público), deveria emitir uma opinião dessa espécie num Estado laico. Portanto, dentro desse macro-contexto, não é de surpreender as razões da superficialidade da avaliação do PNLD e a aprovação de livros em claro confronto com os princípios basilares da ciência e da laicidade.
Sobre a questão do Estado laico, fruto da Revolução Francesa, interessante recorrer à visão de um homem de religião, Padre Sorge:
“A Revolução Francesa sanciona uma descristianização inicial muito tempo antes, com o fim da cristandade medieval. O distanciamento entre fé e cultura, entre religião e progresso, entre política e ética, entre Igreja e Estado, entre sacro e profano inscreve-se num processo histórico plurissecular que tem suas origens no Humanismo, na Renascença, na reforma protestante, no Iluminismo. A Revolução Francesa representa apenas a passagem crítica desse processo. Com ela “cristão” cessa definitivamente de ser sinônimo de “cidadão”. Agora, no centro da vida social, instala-se o homem em vez do fiel.” (SORGE, 1989, pp.114-115)
Sobre a deplorável questão da Ministra Marina Silva, a Folha de S. Paulo, em Editorial, salientou que:
"Sob uma aparência de equanimidade, a tese faz parte de uma investida anticientífica que, com firmeza, cumpre repudiar. Pode-se, é claro, sustentar que a fé pessoal é compatível com o espírito científico; que religião e ciência não se opõem. Talvez não se oponham, mas certamente não se misturam. E é isto o que o criacionismo tenta fazer, sem base comprovada, e com um aparato de falácias que um estudante médio, no Brasil ou em qualquer parte do mundo, não tem condições de identificar. Que a religião fique onde está, e não se faça de ciência: eis uma exigência, afinal modesta, mas inegociável, da modernidade" (FOLHA DE S. PAULO, Editorial, 2008).
Definitivamente a separação entre Estado e Religião, Ciência e Religião é mister que ocorra. Estamos assistindo nos últimos dias, a tentativa de uma Igreja Evangélica em silenciar a imprensa, para, num ato autoritário, usando os instrumentos da democracia, solapar a liberdade de pensamento.
Devemos lutar para que o Estado laico se imponha, ou estaremos construindo o terreno fértil para o nascimento de “madrassas” (escolas fundamentalistas do Islã) cristãs e de um Estado baseado no sectarismo religioso perpetuado pela des-educação de sistemas e livros ditos didáticos.
A modernidade deve, enfim, se impor como um ato próprio da democracia e da convivência plural. Do contrário, estaremos fadados ao fundamentalismo e ao analfabetismo completo, num mundo privado da liberdade de pensar e da democracia!
A CARTA DE MANAUS CONTRA A INGERÊNCIA RELIGIOSA NO ENSINO DE CIÊNCIAS E NA EDUCAÇÃO PÚBLICA BRASILEIRA
Em 2004, foi publicado o seguinte documento
“Carta aberta sobre o ensino do criacionismo no Estado do Rio de Janeiro
Reunidos no III Colóquio Internacional sobre História do Darwinismo: meio ambiente, biodiversidade e difusão da teoria, realizado em Manaus, Brasil, entre 27 e 30 de setembro de 2004, queremos expressar nossa posição sobre a recente proposta de ensinar o criacionismo nas escolas de educação media no Estado do Rio de Janeiro.
O criacionismo é uma doutrina de uma religião, respeitável e meritória de consideração, como todas as crenças religiosas do mundo, mas não deve ser ensinada como se fosse uma teoria científica.
Como debatemos neste Colóquio, foi precisamente a Amazônia um espaço privilegiado, no século XIX, para a investigação tanto da teoria da seleção natural (Wallace, Bates e, em certa medida, Darwin), como da investigação para provar, sem conseguir, a inexistência da evolução (Agassiz). O evolucionismo, surgido como teoria científica no século XIX, que se desenvolveu e consolidou ao longo do século XX, explica o surgimento das espécies a partir da seleção natural.
A medida tomada no Estado do Rio de Janeiro é um ato de autoridade, em que não houve decisão colegiada ou legislativa alguma. Para alguns, isso é parte da debilidade e inoperância da proposta. Nós pensamos que tal decisão pode e deve ser revertida pelos órgãos competentes da educação federal, num âmbito de diálogo, compreensão e tolerância.
No Brasil, de acordo com o artigo IV da Constituição Geral da República, o Estado deve proporcionar educação laica, gratuita e geral.
Manaus, Estado do Amazonas, 30 de setembro de 2004.” [In: JC, 3457: 2008]
O documento se justifica porque, como já acenado na primeira parte deste trabalho, um dos políticos que governou o Estado do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, guindado por poderosas forças conservadoras (políticas e religiosas) como mandatário de um dos mais importantes Estados brasileiros, impôs o ensino do criacionismo nas escolas cariocas. Houve pouca repercussão na mídia brasileira. A carta acima, por exemplo, foi republicada no Jornal da Ciência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (a principal Sociedade científica brasileira, equiparada à AAAS, nos EUA), no dia 26 de fevereiro de 2008. Com somente 22 assinaturas, o documento não mereceu sequer uma repercussão mínima nos números subseqüentes do Jornal.
Deste ano em diante, catapultado pela campanha política presidencial de 2010, as questões da ingerência religiosa no Estado Laico Brasileiro só aumentaram. Podemos citar, por exemplo, a intervenção do Vaticano em dois momentos:
ACORDO VATICANO-BRASIL PARA RECONHECIMENTO DO ESTADO BRASILEIRO COMO NAÇÃO CATÓLICA (In: FORUMPLP, 2008):
Fotografia do encontro entre o papa Giovani Paolo II e o ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso e a esposa (já falecida), Ruth Cardoso
Fotografia do encontro do presidente Lula com o papa Benedetto XVI. Ao centro, Dna. Marisa, esposa do ex-presidente Lula. À esquerda a atual presidenta do Brasil, Dilma Rousseff.
O texto originalmente proposto pelo Vaticano sofreu alterações nos dois anos de uma negociação sem debate com a sociedade e, pelo contrário, mantida em sigilo até que o documento fosse assinado. A solenidade de assinatura foi no próprio dia 12 de novembro de 2008, em Roma, a portas fechadas. Outros países com os quais o Vaticano tem relações diplomáticas também formalizaram a atuação da Igreja em seu território, e o Brasil teria sido o último, entre os que têm população com maioria de católicos, a assinar esse tipo de acordo. Eram grandes as expectativas do Vaticano com relação a este desfecho.
Representantes do Itamaraty conversaram em Roma com a imprensa nacional que, ainda sem conhecer o teor do documento, indagou sobre possíveis privilégios concedidos à Igreja católica, e sobre eventual instituição do ensino religioso nas escolas, o que seria inconstitucional. Apressaram-se em apontar o caráter “administrativo” do documento – dizendo que visa apenas dar “formato jurídico a um intercâmbio que já existe”-, e garantiram que o texto não fere a Constituição brasileira. A embaixadora responsável pelas negociações com a Santa Sé, Maria Edileuza Fontenele Reis, disse que “o acordo não tem nenhuma malandragem, se tivesse era o meu pescoço que iria para a forca”, frase no mínimo inoportuna, para o momento em que o Governo se manifestava, pela primeira vez, a respeito de seu solene ato.
Pelo que se informou, o texto final do Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé Relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, não inclui alguns dos pontos pretendidos pelo Vaticano, como a oficialização de feriados católicos e o estabelecimento da educação moral e religiosa católica nas escolas. A embaixadora do Brasil no Vaticano, Vera Machado, disse que o Brasil recusou também uma cláusula que pretendia abrir a entrada de missionários/as em áreas indígenas brasileiras, em respeito a normas da Funai (Fundação Nacional de Apoio aos Indígenas) de 1987, relativas ao respeito às comunidades indígenas e sua cultura.
O acordo assinado pelo governo Lula precisa passar pelo Congresso Nacional para ser ratificado. Antes disso, é urgente um debate amplo sobre suas implicações, sob o risco de que o país recue em relação à determinação republicana do final do século 19, que separou os poderes Igreja-Estado. E sob o risco de que se elimine de vez a possibilidade de interromper privilégios que a hierarquia católica mantém até hoje, e que buscou consolidar através deste acordo que institucionaliza, por exemplo:
O artigo 8º do acordo, garante à Igreja católica o direito de prestar serviços de “assistência espiritual aos fiéis internados em estabelecimentos de saúde, de assistência social, de educação ou similar, ou detidos em estabelecimento prisional ou similar, observadas as normas de cada estabelecimento, e que, por essa razão, estejam impedidos de exercer em condições normais a prática religiosa e a requeiram”.
Este artigo diz respeito também à questão do aborto. O que se vê na experiência de hoje é que o ‘plantão’ religioso em hospitais, de modo geral tolerado, tem funcionado como espaço para a pregação e pressão sobre as consciências. Observa-se incidência religiosa na postura de alguns profissionais das diferentes categorias que trabalham nessas unidades, e o exercício de proselitismo, principalmente na relação com da população desassistida que chega a essas instituições. Tenta-se convencer mulheres a não praticar o aborto legal, e são comuns episódios de convocação da Polícia, em denúncias contra aquelas que chegam às unidades com sequelas por aborto provocado na clandestinidade.
É difícil imaginar que, junto com a legitimação desta conceção, poderão existir regras para evitar esses abusos -que ferem a ética profissional, ferem direitos humanos e acordos internacionais-, sob a forma de imposição de normas católicas, e desrespeito às diversidades. Como será garantido o direito de recusa a este atendimento, sem insitências ou constrangimentos? como assegurar que agentes religiosos/as contenham ímpetos homofóbicos, lesbofóbicos, ou de pregar a família heterossexual monogâmica como ideal único?
O parágrafo 1º do artigo 11 diz que “o ensino religioso católico e de outras religiões, de matrícula facultativa, constitui disciplina do horário normal das escolas públicas de ensino fundamental, assegurando o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, em conformidade com as leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação”.
Embora o governo brasileiro tenha contido a pretensão da hierarquia católica, inserindo as ressalvas “e de outras religiões” e “em conformidade com as leis vigentes”, isto não é suficiente. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em vigor desde 1997, assegura o respeito à diversidade cultural e religiosa, e veda quaisquer formas de proselitismo. Como isto será garantido no “ensino religioso” proposto? De que forma será assegurada a liberdade de opção? Seria importante dialogar com o professorado do Rio de Janeiro, para conhecer as situações equivocadas que permeiam a experiência de um Estado que aprovou lei de ensino religioso nas escolas. Uma professora nos disse:
“Nas escolas municipais do Rio foram interrompidas as aulas de educação sexual [em que se ensinava sobre doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), fecundação…] para dar lugar ao ensino religioso, por segmentos católicos e pentecostais que são contra a descriminalização do aborto e pregam a abstinência sexual antes do casamento. Esta lei foi sancionada pelo governo Rosinha Garotinho…”
Roseli Fischmann, professora da pós-graduação em Educação da USP, acha que o artigo 11 aumenta “as garantias da Igreja Católica de manutenção das aulas de religião”. Para ela, ao não se referir à liberdade de consciência, o acordo cria ambiente fecundo para uma cultura estigmatizante com relação às pessoas que não têm acesso –e/ou não querem ter- ao ensino religioso. Seria como pensar que este é o único caminho de uma educação para a integridade moral? Esta nos parece ser uma concepção hipócrita de uma integridade que é privilégio de quem tem formação religiosa, ainda mais colocando o catolicismo no topo de uma noção hierárquica entre as próprias matrizes religiosas.
O editorial do jornal “O Globo” reconhece a necessidade de que o artigo 11 seja mais discutido e detalhado, antes de aprovado no Congresso Nacional tornando o ensino religioso um “fato consumado”. Mas o argumento apresentado pelo jornal reforça o estigma com relação a outras matrizes religiosas, ao admitir o risco de que o “facultativo” se converta em “compulsório”, com uma conclusão patética de que “também será desastroso se a intolerância de algumas correntes religiosas conseguir infiltrar-se nas escolas públicas”, como se não houvesse intolerância inclusive no catolicismo.
O advogado católico e militante anti-abortista Ives Gandra Martins teve um artigo publicado em três jornais no dia 14: Correio Braziliense, Estado de S.Paulo e O Globo. Ele afirma no texto que um dos pilares do acordo é a “garantia do direito fundamental à liberdade religiosa”, admitindo que “outras confissões poderão firmar acordos similares, fixando suas relações jurídicas” com o Estado brasileiro, mas “sem o status de acordo internacional, já que não se tratará de acordo entre sujeitos soberanos de direito internacional”. Essa ressalva torna cristalino o reconhecimento do lugar superior do Estado do Vaticano na balança de poder de influência entre igrejas, no mundo ocidental, sem questionar, ou mesmo justificar a legitimidade desse status.
Um último elemento que trazemos, para subsidiar este ponto da discussão, é o aspecto levantado no Observatório da Imprensa pelo jornalista Alberto Dines, apontando por que razão o segmento dos evangélicos, cujo crescente poder está mais na mídia eletrônica do que nas escolas, não protesta diante do acordo:
“…[nem] a poderosa mídia eletrônica evangélica protestará porque não está interessada no ensino religioso. O que ela deseja é continuar distribuindo aos seus deputados mais e mais concessões de radiodifusão”.
O jornalista discorre também sobre este tema em depoimento divulgado no site Último Segundo. Ele denuncia a “perigosa disputa entre evangélicos e católicos, verdadeira ‘guerra santa’ pelo controle dos corações e mentes dos brasileiros no âmbito da mídia eletrônica”, interpretando que o governo brasileiro afronta os fundamentos constitucionais que separam Estado e igrejas, tanto ao assinar o acordo com a Santa Sé, quanto ao distribuir generosas concessões de radiodifusão para aliados evangélicos.
Em matéria publicada, também no Último Segundo, Roseli Fischmann chama atenção para os últimos artigos, em especial o de número 18, onde localiza um dos maiores riscos na frase “O presente acordo poderá ser complementado”. Diz a reportagem:
“Ela explica que esse ponto deixa uma porta aberta para novos adendos e abre precedente para que a Igreja influencie em assuntos ainda mais polêmicos. ‘O governo assinou, deixando aberta essa possibilidade. Isso pode dar espaço para que a Igreja intervenha em questões como o aborto, casamento de pessoas do mesmo sexo, pesquisa com células troco embrionárias, entre outras.”
Lista à qual acrescentaríamos a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, o uso de tecnologias anticonceptivas, e o uso da pílula do dia seguinte.
INTROMISSÃO DO VATICANO NAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS BRASILEIRAS DE 2010 (In: Pco.org, 2010): http://www.pco.org.br/conoticias/ler_materia.php?mat=24233
No dia 28 de outubro de 2010, há três dias das eleições, Joseph Ratzinger, o papa Benedetto XVI, divulgou um texto em que afirma que clero brasileiro deve orientar politicamente os católicos. Segundo o papa,” o clero tem dever de emitir um julgamento moral, inclusive na política, quando assim exigem os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação da alma”.
Ao dizer isso, Ratzinger se referiu principalmente à questão do aborto, a qual a direita, com a ajuda da própria Igreja, tem procurado transformar em eixo da campanha eleitoral, para distrair a atenção da sua política de ataques às condições de vida da classe trabalhadora e do povo brasileiro.
Tal declaração, um chamado a que os padres interfiram diretamente nas eleições, determinando em quem os fiéis devem votar, é uma pregação contra o Estado Laico, que estabelece a separação entre Estado e religião. O próprio Ratzinger já declarou, em mais de uma ocasião, que o Estado laico é um dos “males” que os católicos devem combater nos dias de hoje.
Nesse sentido, é evidente que o Brasil, maior país católico do mundo, tem uma enorme importância para a Igreja Católica, o que torna ainda mais imperativo para ela intervir na política do País.
A Igreja, seja a do Vaticano, seja a dos setores pentecostais e neopentecostais derivados da cultura da direita norte-americana, tem procurado aumentar o seu poder político por meio da luta contra o Estado Laico e da defesa de um programa reacionário e obscurantista.
No Brasil de 2010, a primeira candidata a colocar aborto e células-tronco sob um foco exclusivamente religioso foi a ex-Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Suas declarações bombásticas cobrando da outra candidata, Dilma Rousseff, uma posição clara contra o aborto, colocou em primeiro plano, o debate religioso sobre um tema que diz respeito única e tão-somente à questão da saúde pública. Porém, Marina Silva, na ânsia de virar o jogo ao seu favor, acabou por municiar a campanha e a direita brasileira, representada pelo concorrente de Dilma, José Serra,m com um tema fundamentalista cristão que erodiu as bases da tolerância religiosa brasileira.
O Estado Laico está sob risco: digladiam-se hoje, no Brasil, o Vaticano, as correntes pentecostais e neopentecostais e os interesses políticos-eleitoreiros imediatos. Ciência, Educação Pública e Democracia estão hoje sob risco. O Brasil, em breve, poderá figurar, ao lado dos EUA, Afeganistão, como mais outra república fundamentalista. Corações e mentes serão calados sob o jugo de um laicismo extinto!
A GUISA DE UMA CONCLUSÃO INCONCLUSA
Um dos graves problemas em todas as questões que envolvem temáticas de ciência e de saúde pública (aborto, evolucionismo, HIV, células-tronco), deveriam encontrar na comunidade científica e na comunidade leiga um debate sobre as várias leituras da ciência e da validade de seus paradigmas. Conhecer a própria ciência e desconhecê-la, no sentido de reconhecer-lhe suas limitações, poderia ser uma estrada segura para a construção de uma sociedade menos dependente de seus políticos, religiosos ou fanáticos de qualquer natureza.
Já dizia Feyerabend (1977) sobre as ilusões de nossa epistemologia:
“o imaginado conteúdo das teorias anteriores [...] diminui e pode reduzir-se até o ponto de tornar-se menor que o imaginado conteúdo das novas ideologias” (p. 276-277)
e
“o aparato conceitual da teoria que emerge lentamente, logo começa a definir seus próprios problemas, sendo esquecidos ou postos de lado como irrelevantes os problemas, os fatos, as observações anteriores.” (p. 275)
A ciência, seu ensino e sua divulgação devem se precaver para a crescente ilusão pedagógica feyerabendiana, sob o risco de tornar, ela própria, a ciência, um terreno fértil para neo-sacerdotes à semelhança das Igrejas que tentaram, tentam e tentarão sufocá-la com a fé!
REFERÊNCIAS
ACORDO BRASIL-VATICANO E O RISCO DAS ENTRELINHAS. 22 de novembro de 2008. In: http://www.forumplp.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1043:acordo-brasil-vaticano-e-o-risco-das-entrelinhas&catid=38:acao-politica&Itemid=155
FEYERABEND, P. Contra o Método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
FOLHA DE S. PAULO. Criacionismo, Não! (Editorial – A2). Edição de 20 de janeiro de 2008.
JORNAL DA CIÊNCIA (Jc E-mail), 26 de fevereiro de 2008. In: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=54484
OLE – OBSERVATÓRIO DA LAICIDADE DO ESTADO. In: http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/
RELIGIÃO X ESTADO: PAPA DEFENDE INTERVENÇÃO DA IGREJA NAS ELEIÇÕES BRASILEIRAS. 30 de outubro de 2010. In: http://www.pco.org.br/conoticias/ler_materia.php?mat=24233
SORGE, P. “Enfim a Igreja Aprovou 1789”. In: A Revolução Francesa”. São Paulo: Editora Três, 1989, pp. 114-116.
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http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81345-6010-506,00.html
Inserito: 1 aprile 2011
Scienza e Democrazia/Science and Democracy
www.dmi.unipg.it/mamone/sci-dem
* Laboratório de Criação Visual / Universidade Tecnológica Federal do Paraná – UTFPR, Brasil, E-mail: macedane@yahoo.com.
** DEARTES, Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG, Brasil. E-mail: josieaps@hotmail.com .